Sexta-feira de manhã por aí. Feliz,
contente e cantando alegremente. Rodoviária. Resolvi acender aquele cigarro de
chamar ônibus. Sabe aquele que vai pra lixeira quase intacto? Pois é. Eis que
me apareceu um sem-teto que mora nos arredores. Pediu um cigarro. Acendeu,
agradeceu e saiu.
Voltava
eu no dia seguinte. Bem mais feliz, bem mais contente e cantando muito mais
alegremente do que na manhã anterior (falarei sobre isso em outro post). O mesmo sem-teto que me pedira o cigarro
lembrou de mim e veio agradecer novamente. Aproveitou o ensejo e ofereceu um
gole de cachaça. Recusei o gole. Ele pegou mais um cigarro e saiu. Voltou,
pediu mais um cigarro (para a esposa). Agradeceu novamente e saiu.
Semana
seguinte. O supracitado sem-teto acompanhado da esposa:
-Ô, negão!
‘Cê mesmo, barbudo! Beleza, gente boa?
-Opa! De
bonissíma e vc?
-Na
santa paz! Seguinte, querido: vai esperar muito aí? Qualquer coisa baixa alí no
“barraco” comer uma macarronada com a gente.
-Valeu,
querido, mas o busão acabou de encostar. Valeu mesmo. Outro dia eu apareço pra
boia.
-Falou!
– disse ele, levando o que restava no meu maço de cigarros.
Na
semana seguinte, na ida, não os vi por ali. Teriam eles resolvido se mudar?
Teriam sido forçados a abandonar a base em razão de uma medida “Doriana”, cada
vez mais comum nos nossos dias? Fiquei com a dúvida martelando a cabeça durante
todo o fim de semana.
Dia
seguinte. Desembarque na rodoviária. 3 horas de espera pela frente. Carona furou, pra variar. Minhas
parcas economias não me permitem fazer refeições decentes em lugares decentes
toda vez que estou na pista. Prefiro, em situações assim, almoçar pururuca com
cerveja em vez de me arriscar num “risca-faca gastronômico”. No caminho...
-Ô,
barbudo! Ajuda a gente, cara. Rola escorregar umas moedas pra rachar uma
refeição com a gente?
-Peraí
que eu já volto.
Pensei
em não voltar, na verdade. Mudei de ideia e fui ao mercado. Pães, mortadela (grana
curta...sacumé) e resolvi almoçar com eles. De modo geral não me faz a menor
diferença fazer minhas refeições sozinho. Até prefiro, aliás, uma vez
que...sabe-se lá que merda não foi consertada na minha arcada dentária...faz um
ruído irritante quando como. Enfim...sabe-se lá o porquê...fui no “barraco” deles, que nada mais é do
que um antigo cocho ou descanso de animais que, em seu tempo, ralavam puxando
carroça.
-Voltou
mesmo, hein barbudo! Ponta firme, você. Ô, Néia, cadê aquelas moedas lá pra
gente comprar o Vencetex?
(Digressão: Vencetex é um refrigerante, tipo uma tubaína
de 2 litros, muito consumida nessas paragens)
Conversa
começa a rolar entre um pão e outro. Vencetex foi batizado pelo corote. Passei
reto. Descobri que o cara que sempre vinha falar comigo se chama Antonio.
Tonho, para os amigos. Além dele, Néia (a esposa), Pereba (o nome não era
verdadeiro. As perebas, sim), Casadinho (veja só o bullying: o apelido “Casadinho”
vem daquele docinho de festa de criança. Metade branco, metade preto. Casadinho
tem vitiligo) e uma mocinha, bem mais nova que os demais, que não disse o nome
ou qualquer coisa com coisa porque a pedra não deixou. Apresentei-me, mas
continuei sendo o "barbudo". Ou negão. Pedi pra tirar uma foto deles ou com eles.
Negativo. Tonho explica:
-Cara,
sei que você não vai entender...mas e se essa porra de foto sai num jornal ou
nessa internet e a família acaba achando a gente? E se resolvem enfiar todo
mundo numa porra de um albergue desses? Cara, a gente curte isso aqui. Deve ser
foda pra você entender isso de curtir viver na rua, sem teto, comendo dia sim,
dia não...mas é isso aí...
-Não tá
mais aqui quem falou...
-Leva a
mal não, parceiro – agora é a vez da Néia – mas todo mundo aqui já se fudeu na
mão das famílias, tá ligado? Ou foi expluso de casa, ou adoeceu e a família não
quis saber...essas coisas.
-Beleza.
Entendi.
Entendi
mesmo. Continuei alí, mais ouvinte que falante. Até segurando pra não deixar o
cisco entrar nos olhos. Sério mesmo. E a conversa foi rolando e eu estava a
ponto de perder o ônibus.
-Aparece
mais aí, mano. A gente é sem-teto mas é do bem!
-Opa!
Pode deixar que eu apareço. (apareci mesmo, na verdade).
-Cara,
foi massa falar com você. Maioria do povo só passa, joga uma grana e tampa o
nariz. Você sentou, comeu com a gente e ficou aí quietão ouvindo esse povo
falar esse monte de bosta, de história triste e os caralho. Difícil isso, viu?Povo
parece que esquece que a gente também é gente. Valeu mesmo, barbudo. Que Deus
te dê o triplo dessa preza que você fez hoje.
Ônibus
rumando para o oeste. Há quanto tempo será que eles não conversavam com alguém
de fora? O que falta pra que pessoas os vejam como pessoas? Cisco caiu nos
olhos. Inevitável.
Dormi.
Acordei no meu destino. Dormi, acordei e rumei para a cidade onde trabalho
e durmo três noites por semana. Até hoje passo por lá. Alguns deles se
foram...para outras cidades. Muitos vieram e ocuparam seus lugares. A cada fim
de semana o “barraco” está mais abarrotado de sem-tetos...
Engraçado
pensar na coisa toda por esse lado. Sem-teto. Como se eu mesmo não fosse um
tipo de sem-teto, embora nunca tenha passado por qualquer tipo de privação que
os companheiros de lanche passam. Mas a coisa toda se resume a isso...uma
espécie mais afortunada de sem-teto.
Sim,
ainda tenho um endereço em Londrina. Não consigo ir pra lá sempre que tenho
vontade e o coração me pede...e isso dói, embora há quem diga ou pense que não. Não me falta o
alimento e a cama quente parar descansar o esqueleto. Mas falta algo, uma certa estabilidade, um lugar pra chamar de "meu", quem sabe. No mais...vivo
perambulando por quatro cidades de três estados diferentes. Durmo, no máximo,
três noites seguidas em alguma dessas cidades...nunca em Londrina, infelizmente, pois o
horário dos ônibus só permite um bate-volta com tempo insuficiente para matar a
saudade do filho e de todas as outras pessoas que amo.
“Que
Deus te dê o triplo dessa preza que você fez hoje”. Não sei quem ou o que é
deus. Supondo, claro, que exista um, uma, uns, umas. Por que não? Tambem não
tenho resposta para tal questão. Nem quero. Ainda que a saudade me aperte o
peito toda vez que respiro, a atual conjuntura - todas as coisas ótimas que têm me acontecido neste ano, todas as pessoas ótimas que tenho conhecido e partilhado da convivência, apesar dos pesares - permite que eu diga pro Tonho que,
qualquer que seja o ente que ele considera como sendo “deus”, ele já está me
devolvendo a “preza” que ele acha que fiz. Talvez diga isso a ele no próximo
fim de semana.