segunda-feira, 22 de maio de 2017

Sem-teto

 Sexta-feira de manhã por aí. Feliz, contente e cantando alegremente. Rodoviária. Resolvi acender aquele cigarro de chamar ônibus. Sabe aquele que vai pra lixeira quase intacto? Pois é. Eis que me apareceu um sem-teto que mora nos arredores. Pediu um cigarro. Acendeu, agradeceu e saiu.
            Voltava eu no dia seguinte. Bem mais feliz, bem mais contente e cantando muito mais alegremente do que na manhã anterior (falarei sobre isso em outro post). O mesmo sem-teto que me pedira o cigarro lembrou de mim e veio agradecer novamente. Aproveitou o ensejo e ofereceu um gole de cachaça. Recusei o gole. Ele pegou mais um cigarro e saiu. Voltou, pediu mais um cigarro (para a esposa). Agradeceu novamente e saiu.
            Semana seguinte. O supracitado sem-teto acompanhado da esposa:
            -Ô, negão! ‘Cê mesmo, barbudo! Beleza, gente boa?
            -Opa! De bonissíma e vc?
            -Na santa paz! Seguinte, querido: vai esperar muito aí? Qualquer coisa baixa alí no “barraco” comer uma macarronada com a gente.
            -Valeu, querido, mas o busão acabou de encostar. Valeu mesmo. Outro dia eu apareço pra boia.
            -Falou! – disse ele, levando o que restava no meu maço de cigarros.
            Na semana seguinte, na ida, não os vi por ali. Teriam eles resolvido se mudar? Teriam sido forçados a abandonar a base em razão de uma medida “Doriana”, cada vez mais comum nos nossos dias? Fiquei com a dúvida martelando a cabeça durante todo o fim de semana.
            Dia seguinte. Desembarque na rodoviária. 3 horas de espera pela frente. Carona furou, pra variar. Minhas parcas economias não me permitem fazer refeições decentes em lugares decentes toda vez que estou na pista. Prefiro, em situações assim, almoçar pururuca com cerveja em vez de me arriscar num “risca-faca gastronômico”. No caminho...
            -Ô, barbudo! Ajuda a gente, cara. Rola escorregar umas moedas pra rachar uma refeição com a gente?
            -Peraí que eu já volto.
            Pensei em não voltar, na verdade. Mudei de ideia e fui ao mercado. Pães, mortadela (grana curta...sacumé) e resolvi almoçar com eles. De modo geral não me faz a menor diferença fazer minhas refeições sozinho. Até prefiro, aliás, uma vez que...sabe-se lá que merda não foi consertada na minha arcada dentária...faz um ruído irritante quando como. Enfim...sabe-se lá o porquê...fui no “barraco” deles, que nada mais é do que um antigo cocho ou descanso de animais que, em seu tempo, ralavam puxando carroça.
            -Voltou mesmo, hein barbudo! Ponta firme, você. Ô, Néia, cadê aquelas moedas lá pra gente comprar o Vencetex?
(Digressão: Vencetex é um refrigerante, tipo uma tubaína de 2 litros, muito consumida nessas paragens)
            Conversa começa a rolar entre um pão e outro. Vencetex foi batizado pelo corote. Passei reto. Descobri que o cara que sempre vinha falar comigo se chama Antonio. Tonho, para os amigos. Além dele, Néia (a esposa), Pereba (o nome não era verdadeiro. As perebas, sim), Casadinho (veja só o bullying: o apelido “Casadinho” vem daquele docinho de festa de criança. Metade branco, metade preto. Casadinho tem vitiligo) e uma mocinha, bem mais nova que os demais, que não disse o nome ou qualquer coisa com coisa porque a pedra não deixou. Apresentei-me, mas continuei sendo o "barbudo". Ou negão. Pedi pra tirar uma foto deles ou com eles. Negativo. Tonho explica:
            -Cara, sei que você não vai entender...mas e se essa porra de foto sai num jornal ou nessa internet e a família acaba achando a gente? E se resolvem enfiar todo mundo numa porra de um albergue desses? Cara, a gente curte isso aqui. Deve ser foda pra você entender isso de curtir viver na rua, sem teto, comendo dia sim, dia não...mas é isso aí...
            -Não tá mais aqui quem falou...
            -Leva a mal não, parceiro – agora é a vez da Néia – mas todo mundo aqui já se fudeu na mão das famílias, tá ligado? Ou foi expluso de casa, ou adoeceu e a família não quis saber...essas coisas.
            -Beleza. Entendi.
            Entendi mesmo. Continuei alí, mais ouvinte que falante. Até segurando pra não deixar o cisco entrar nos olhos. Sério mesmo. E a conversa foi rolando e eu estava a ponto de perder o ônibus.
            -Aparece mais aí, mano. A gente é sem-teto mas é do bem!
            -Opa! Pode deixar que eu apareço. (apareci mesmo, na verdade).
            -Cara, foi massa falar com você. Maioria do povo só passa, joga uma grana e tampa o nariz. Você sentou, comeu com a gente e ficou aí quietão ouvindo esse povo falar esse monte de bosta, de história triste e os caralho. Difícil isso, viu?Povo parece que esquece que a gente também é gente. Valeu mesmo, barbudo. Que Deus te dê o triplo dessa preza que você fez hoje.
            Ônibus rumando para o oeste. Há quanto tempo será que eles não conversavam com alguém de fora? O que falta pra que pessoas os vejam como pessoas? Cisco caiu nos olhos. Inevitável.
            Dormi. Acordei no meu destino. Dormi, acordei e rumei para a cidade onde trabalho e durmo três noites por semana. Até hoje passo por lá. Alguns deles se foram...para outras cidades. Muitos vieram e ocuparam seus lugares. A cada fim de semana o “barraco” está mais abarrotado de sem-tetos...
            Engraçado pensar na coisa toda por esse lado. Sem-teto. Como se eu mesmo não fosse um tipo de sem-teto, embora nunca tenha passado por qualquer tipo de privação que os companheiros de lanche passam. Mas a coisa toda se resume a isso...uma espécie mais afortunada de sem-teto.
            Sim, ainda tenho um endereço em Londrina. Não consigo ir pra lá sempre que tenho vontade e o coração me pede...e isso dói, embora há quem diga ou pense que não. Não me falta o alimento e a cama quente parar descansar o esqueleto. Mas falta algo, uma certa estabilidade, um lugar pra chamar de "meu", quem sabe. No mais...vivo perambulando por quatro cidades de três estados diferentes. Durmo, no máximo, três noites seguidas em alguma dessas cidades...nunca em Londrina, infelizmente, pois o horário dos ônibus só permite um bate-volta com tempo insuficiente para matar a saudade do filho e de todas as outras pessoas que amo.
            “Que Deus te dê o triplo dessa preza que você fez hoje”. Não sei quem ou o que é deus. Supondo, claro, que exista um, uma, uns, umas. Por que não? Tambem não tenho resposta para tal questão. Nem quero. Ainda que a saudade me aperte o peito toda vez que respiro, a atual conjuntura - todas as coisas ótimas que têm me acontecido neste ano, todas as pessoas ótimas que tenho conhecido e partilhado da convivência, apesar dos pesares - permite que eu diga pro Tonho que, qualquer que seja o ente que ele considera como sendo “deus”, ele já está me devolvendo a “preza” que ele acha que fiz. Talvez diga isso a ele no próximo fim de semana.

4 comentários:

  1. As histórias ensinam... Quantos tonhos eu ignorei sem entender o motivo deles estarem nessa situação. Enxerga-los sem pena e entender que é uma escolha é pouco, mas pode ser o primeiro passo.

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